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» » Uma introdução à história do Blues - parte 1



O Blues foi uma das principais fontes de todos os gêneros musicais americanos: jazz, soul, disco, rock'n roll, uma boa parte da música pop, da corrente folk urbana os anos 60 e mesmo, de modo significativo, da música country em todas as suas derivadas - western swing, bluegrass, rockabilly...
As características essenciais do Blues - swing, poema de 12 compassos, alterações da escala maior - são encontradas, de um modo ou de outro, em um número considerável de artistas de gêneros e estilos tão diferentes como Ornette Coleman ou Frank Sinatra, os Rolling Stones ou Doc Watson, e até na Europa do Leste e a Ásia! De Johnny Holliday a Michel Jonasz, pouquíssimos artistas atuais de música popular seriam o que são sem um empréstimo freqüente do Blues. Paradoxalmente, se a importância do Blues na criação na elaboração de todas essas músicas do século XX é relativamente reconhecida, muitas exegeses só deram ao Blues o valor de fonte, negando-lhe qualquer evolução específica e qualquer vida autônoma. Entretanto, nos últimos anos, o Blues se impôs na Europa - principalmente na França - como um gênero bem particular, com seu público, que não cessa de crescer, seus grandes nomes, suas revistas especializadas. Os concertos e turnês se multiplicam, várias obras dedicadas a esse gênero aparecem, e catálogos de Blues são atualmente encontrados em todas as lojas de discos, engrossando as opções até a exaustão, o que em absoluto não era o caso há apenas uma década. Mas, se o apreciador de Blues reconhece instantaneamente "sua" música, raramente é capaz de situar seus contornos e limites, e muito menos retratar sua história e sua evolução. Com efeito, muitos conflitos vêm da ausência de uma análise em profundidade, avivada até em data recente pela fragilidade da pesquisa etnomusicológica norte-americana nesse campo. De fato, contrariamente ao jazz, cuja vocação universalista o fez sair rapidamente de seu contexto etnocultural de origem, o Blues foi a primeira e principal forma cultural especificamente negro-americana e, enquanto tal, foi - como o povo negro que a criou e até meados dos anos 60 - objeto de desprezo ou de ignorância dos americanos brancos - apesar de transtornar insidiosamente e seguramente, por sua incomparável originalidade, seu vigor e sua riqueza, toda a música americana - antes de estender-se ao Velho Continente.
A história do Blues, sua evolução, suas sucessivas mutações são inseparáveis da longa subida para a superfície do povo negro americano, para quem, durante várias décadas, o Blues foi, mais que uma música, seu principal meio de expressão, desempenhando igualmente, desde então, um papel sociológico e psicológico absolutamente não-habitual na música moderna do mundo ocidental. Na realidade, e é preciso insistir neste ponto, o Blues é uma etnomúsica mas em condições sócio-históricas tais, que pôde ser explorada comercialmente antes de tornar-se objeto de estudos científicos! É só, portanto, através de uma abordagem desse tipo etnomusicológica, sociológica e histórica - que se pode compreender realmente o Blues e dar-lhe seu lugar exato na civilização americana. Porque, nascido de uma longa tradição oral e abalando então pesadamente as regras do solfejo e da harmonia, oBlues desafiou durante muito tempo os hábitos da escrita musical. Todo estudo profundo do Blues deve então apoiar-se em raras fontes escritas, na escuta atenta e comparativa das gravações sonoras desde 1930 (data do primeiro disco de Blues e nas entrevistas insubstituíveis dos mais antigos músicos vivos desse gênero musical, que freqüentemente seguiram ou mesmo precederam a evolução acelerada de seu povo e de sua música. Pois não esqueçamos que apenas um século separa o fim da Guerra de Secessão e a emancipação dos escravos negros do reconhecimento internacional do Blues! Este pequeno site deseja ser a síntese de muitos anos de consultas de todas essas fontes, de numerosos testemunhos e entrevistas, realizadas às vezes por mim mesmo dentre as quais algumas serão aqui utilizadas pela primeira vez, de um conhecimento interior e exterior dessa música e sobretudo das pessoas que inicialmente o criaram, ou seja, o sofrido povo negro americano.
BLUES? O QUE É ISTO?
Uma definição completa e exata do Blues é difícil, pois, se ele é, claro, um gênero musical, foi também muito mais que isso para o povo negro americano que o criou. E, se os especialistas analisam (freqüentemente com certa dificuldade) o Blues em termos musicais, os criadores dessa arte só falam dela de forma lírica. Mas escutemos uns e outros. Veja então uma interessante definição musicológica e histórica: "A escala do Blues nasce da contaminação da escala diatônica ocidental pelo sistema africano... As melodias se organizam no interior de um sistema pentatonal que ignora o semitom, compreendendo uma escala de cinco tons inteiros que coincidem com cinco dos intervalos da escala diatônica e não concordam com dois deles, o terceiro e o sétimo, que são semitons na escala diatônica e são, dessa forma, estranhos ao ouvido africano. Quando colocado em contato com uma música de um tom maior diatônico, o africano tem tendência a não mais saber onde se encontra. Todas as vezes em que aproxima do terceiro e do sétimo em qualquer acorde, ele terá tendência a distorcê-los por violentos efeitos de vibrato até que entrem em sua escala alterando por sustenido ou por bemol. 0 tempo passa, e tais modificações tendem a cristalizar-se sob a forma de novas escalas que não devem ser consideradas muito tempo como fantasias... De uma dessas escalas saiu toda a tradição do jazz americano. Essa escala, que é a maior adicionada de terceiras e de sétimas menores, foi algumas vezes chamada de "escala Blues". A escala Blues apresenta, por conseguinte, dois pontos de ambigüidade: a nota do terceiro grau - a mediante é de bom grado desviada de semitom, determinando assim, com a tônica, um intervalo de terça menor; o mesmo ocorre com a do sétimo grau - a sensível - determinando assim um intervalo de sétima menor. São essas notas - que fazem com que a escala Blues hesite constantemente entre o modo maior e o modo menor e gere, com isso, seu clima expressivo característico - que chamamos de Blue notes... Essa escala, através do significado equívoco que instaura, comanda toda a música negro-americana autêntica..." Mas que pensam os criadores negros? Destaquemos os títulos de alguns Blues mais conhecidos:
Blues is a feeling, I'm drinking my Blues away, Blues, stay away from me, The Blues will never die. Robert Johnson, no célebre Walkin' Blues, vai mais longe e define: Some people tells you the worried Blues ain't so bad/But it's the worst feelin' a good man' most ever had, que só podemos grosseiramente traduzir por: "Alguns lhes dirão que este Blues atormentado não é tão terrível / mas é o pior sentimento que um homem pode jamais experimentar". E o pianista-cantor Little Brother Montgomery descreve seu encontro com o Blues, magnificamente personalizado em First time I met the Blues: "The first time I met the Blues, I was walking through the woods / He knocked at my house and done me all the harm he could / Now the Blues got after me Lord and run me from tree to tree / You should have heard me begging: `Mister Blues, don't murder me' / Good morning, Mr. Blues, what are you doing here so soon? / You be's with me in the morning and every night and noon ".
Como a abordagem artístico-psicológica do Blues feita por seus criadores aparece assim tão diferente de sua definição musicológica feita pelos especialistas exteriores, tentamos dar conta dessa dualidade no pequeno artigo "Blues" da Enciclopédia do Blues: "Define-se em geral o Blues através de diversas características técnicas: e uma parte cantada poética de 12 compassos segundo o esquema A-A-B... mas esses compassos são muito irregulares, deixando lugar a uma resposta do instrumento: essa interação entre o canto e a parte instrumental é uma outra característica do Blues (e estendeu-se a toda a música negra americana): o instrumento prolonga ou imita a voz humana. 0 Bluesman não se acompanha ao violão, ele o faz responder a sua voz; desde então, a exatidão métrica, as notas trocadas corretamente ou a melodia do conjunto contam menos que as inflexões tiradas do instrumento, a sonoridade que se lhe dá e a intensidade da emoção do músico no momento em que toca (feeling)... o Blues é uma música relativamente rígida e limitada, o que freqüentemente dá a impressão a um ouvinte menos advertido de que 'todos os Blues são iguais'. É claro que isso não é verdade, mas um Blues difere de outro segundo a qualidade do swing e do feeling transmitido pelo artista, e o amador julga o músico a partir de sua aptidão em comunicar seus sentimentos. Em nossa opinião, ainda que cômoda, não podemos nos limitar à definição técnica do Blues. Pois, música de origem africana, o Blues desempenhou um papel considerável na história do povo negro americano, sendo que o Bluesman ocupou na América, com toda evidência, o lugar ocupado pelo feiticeiro da África, que era também simultaneamente poeta e músico. A comunidade negra pedia ao Bluesman que fosse compositor, improvisador, poeta, coletor e arranjador de temas tradicionais, cantor, virtuose de seu instrumento, animador público, sociólogo, e ele era julgado por seus contemporâneos pela extensão de seus talentos em todos esse campos... Além disso, o Bluesman também desempenhava um papel psicoterápico para si mesmo e para seu auditório. Juntos, encontravam no Blues um efeito catártico para seus tormentos. Aliás, o termo 'Blues' mal-definido é geralmente sinônimo de fossa...Melhor que uma longa exegese, o título de um Blues célebre resume bem tudo o que é essa música:
The Blues ain't nothing but a good man feeling bad (0 Blues não é nada além de um bom homem se sentindo mal)". A partir desses pontos de vista diferentes mas complementares, agora compreende-se sem dúvida que o Blues foi, no sentido amplo do termo, uma música étnica: a criação espontânea do povo negro-americano que, condenado ao isolamento e ao desespero, carregou de toda emoção a única forma de arte que lhe foi verdadeiramente aberta na África: a música. Então o Blues, para ser compreensível, deve ser recolocado em seu contexto real: o itinerário histórico, psicológico, sociológico do povo negro em terra americana, do qual foi a expressão privilegiada, seguindo sua evolução e desposando seus contornos.
O NASCIMENTO DO BLUES
É no diário de Charlotte Forten que aparece pela primeira vez o termo "Blues". Charlotte era uma negra nascida livre no Norte, que tinha estudado e se tornado professora. Depois de alguns anos de ensino no estado de Maryland, decidiu, a pedido do proprietário, ensinar a ler os escravos de Edito Island, na Carolina do Sul e aí morou de 1862 a 1865. Ela manteve um relatório quase que diário desses anos, notando sobretudo as dificuldades de toda ordem que encontrava em suas obrigações. No domingo de 14 de dezembro de 1862 escreveu, transtornada pelos gritos que subiam dos bairros de escravos: "Voltei da igreja com o Blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável". Ela não define as relações eventuais do Blues com qualquer expressão musical mas nota, todavia, alguns dias mais tarde (18 de fevereiro de 1863), falando da canção Poor Rosy: "Uma das escravas me disse: Gosto de Poor Rosy mais do que de qualquer outra canção, mas para cantá-la bem é preciso estar muito triste e com o espírito inquieto". Não há nenhuma dúvida que esses termos definem o humor necessário ao Blues, como testemunham dezenas de entrevistas de artistas. Se Poor Rosy, tal como a conhecemos através de algumas versões gravadas depois de 1920, não é propriamente um Blues mas uma espécie de balada bem ritmada, e se sabemos que o Blues provavelmente não existia na época em que Charlotte Forten se encontrava em Edito Island, o espírito do Blues em si já existia e o termo "Blues", com todas as suas conotações depressivas e de fossa, certamente era muito difundido entre os negros.
É significativo que Charlotte Forten não sentisse a necessidade de explicitar o termo que acabava de empregar, sendo que fez isso numerosas vezes para outras palavras. Se o termo "Blues" em seu sentido atual parece ter sido de uso corrente em meados do século XIX, a origem desse nome é incerta. Não temos conhecimento da existência de nenhuma explicação escrita quanto ao nascimento desse termo antes de 1960 e as primeiras pesquisas científicas sobre esse gênero musical. Mesmo um folclorista tão advertido como Alan Lomax, que gravou centenas de canções e de entrevistas com músicos negros para a Biblioteca do Congresso nos anos 30 e 40, empregava o termo "Blues" como uma palavra da linguagem corrente, sem jamais aprofundar seu sentido etimológico.
A música dos negros durante a escravidão. Natureza.
A atriz inglesa Fannie Anne Kemble, que casou-se com um rico plantador da Geórgia, nos dá uma idéia do que era a música dos escravos negros em seu Diário de uma estadia em uma plantação da Geórgia (1938-1939):
"... (as canções dos negros) são... extraordinariamente selvagens e difíceis de relatar. A maneira pela qual o coro explode entre cada frase da melodia cantada por uma voz solista é muito curiosa e eficaz".
Ela define um pouco mais a função desses cantos: ritmar o trabalho e fazer com que pareça mais leve.
0 que permite ao congressista Daniel C. De Jarnette, voltando em 1860 de uma viagem às plantações do Sul onde ouvira escravos cantando durante o trabalho, notar, sem ironia, em um de seus discursos no Congresso:
"Os negros das plantações cantam trabalhando... Eu afirmo... há mais alegria de viver e felicidade sem nuvens entre os escravos do Sul do que em qualquer outra população laboriosa do globo".
As Notas sobre o estado da Virgínia de Thomas Jefferson' são também extremamente interessantes, pois o autor nelas descreve de modo detalhado os instrumentos de música usados pelos negros em meados do século XIX, em particular o banjo, ancestral do banjo, que parece ter sido uma adaptação sutil de vários instrumentos de origem africana: o fiddle, esse violino popular de origem irlandesa que muitos escravos negros parecem ter aprendido a tocar. É claro que não há traços de violão na descrição de Jefferson, o que não é de surpreender, pois, exceto nos estados do Sudoeste (Texas, Califórnia), sob influência espanhola, esse instrumento só fez realmente sua aparição na América no início do século XX.
0 que pode surpreender muito mais é o fato de que Jefferson não revela nenhum traço de tambores entre os escravos negros. 0 Black Code aplicado pelos plantadores do Sul estipula que os escravos não têm o direito de tocar tambores ou flautas que "poderiam ser usados, tal qual na África, como meios de linguagem e de comunicação... e poderiam servir para incitar à revolta".

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Publicado por Distintivo Blue

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