Luiz Gonzaga: O matuto que conquistou o mundo
Gonzaga, o Robert Johnson ou Bob Marley brasileiro
Vez em quando me pego pensando em Luiz Gonzaga. Esse era o cara! Um perfeito exemplo de músico nato com espírito empreendedor e sem medo de correr atrás dos seus objetivos, além de ser um gênio. Não é preciso narrar sua trajetória aqui, já que temos centenas de artigos na internet, dúzias de livros, trabalhos acadêmicos (inclusive o meu TCC) e até um filme tosco e raso que volta e meia passa na TV.
O grande lance é que temos aqui um gênio movido pelo próprio instinto. Ele fez o Brasil ter uma cara, num período em que se buscava justamente isso: a verdadeira e orgânica identidade brasileira para ser transformada num produto comercial. O que se ouvia no Brasil dos anos 40 eram os boleros, foxtrotes gringos e também chorinhos. Tocou isso tudo, até blues. Quando lhe pediram para tocar "alguma coisa lá do norte" em pleno Rio de Janeiro, sua vida (e o Brasil) mudou: pegou toda a música folclórica que tocava desde criança com o pai no Pernambuco rural e trouxe para o meio urbano. Obviamente virou sucesso.
Bateu o pé firme e mostrou aos produtores da Rádio Nacional que também poderia cantar, mesmo não tendo o vozeirão do Nelson Gonçalves. E cantou bonito: conseguiu como ninguém traduzir o cotidiano do nordeste rural, transformando-o numa caricatura que até hoje vive forte (vide o mascote das casas Bahia com seu chapéu de cangaceiro. Acredite: NUNCA vi alguém usar um troço desse aqui na Bahia, salvo em peças teatrais). Sim, praticamente TUDO o que se vê com relação ao nordestino veio dele: o trio nordestino (sanfona, zabumba e triângulo), a ideia do lugar onde só há tristeza, seca e pobreza (durante a seca em SP aqui em casa não faltou água um dia sequer), e uma infinidade de símbolos caricatos que soube usar com maestria para a construção de si mesmo como mito.
Em vários livros sobre o velho Lua vi que haviam dois grandes ícones nordestinos, reconhecidos em qualquer lugar da região: o padre Cícero, figura autoritária, mas carismática de Juazeiro do Norte-CE que é considerado santo por muitos e cuja estátua é quase do tamanho da do Cristo Redentor do Rio; Lampião, o anti-herói que acumula infinitas histórias entre os mais antigos. Minha avó tem várias sobre as idas do bando à fazenda do meu bisavô, em Pernambuco. Esse exerce um fascínio enorme em todos. Herói ou bandido? Bom ou mau? O próprio Luiz Gonzaga narra alguns crossovers entre os dois em suas músicas.
Luiz Gonzaga é, para mim, o terceiro grande ícone nordestino: não há uma alma viva por aqui que não o conheça. Mesmo os roqueirinhos adolescentes radicais o respeitam. É o equivalente ao Bob Marley no Reggae, Chuck Berry no rock, Carlos Gardel no tango e muito mais que o Robert Johnson no blues. Ele criou a coisa toda. Formatou o folclórico, colocou coisas suas e transformou num produto. Quando a bossa nova surgiu o Brasil já tinha cara graças a ele. Ficou no ostracismo até a tropicália, quando Caetanos e Gilbertos ousaram dizer que gostavam de rock e Luiz Gonzaga. Aí era permitido, mais uma vez, ser fã às claras. O rei do rock brasileiro, Raul Seixas, também sempre se declarou devoto. E tem como não ser? Não há lugar no Brasil que não tenha sofrido sua influência... Mesmo que não o perceba ou reconheça.
Todo nordestino (e descendente de nordestinos que tem vergonha de se assumir) tem alguma boa lembrança com Gonzaga. Ele remete à infância, aos velhos tempos. Com certeza se contorce na cova diariamente com o que se chama de forró e música sertaneja atualmente, mas sempre estará à mão, num velho LP ou num streaming do Spotify, mantendo viva a boa música brasileira, feita com sinceridade e feeling.
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