Lucille Berce atravessou o país em busca do seu sonho. Foto: divulgação
A cantora Lucille Berce (MA) e sua bela voz vêm conquistando o público há algum tempo, principalmente através das redes sociais, onde se tornou comum acompanhar concertos inteiros ao vivo ou trechos selecionados. Vestida a caráter, ao estilo das grandes divas do jazz e acompanhada sempre por excelentes músicos, Lucille reúne em si vasta iconografia do universo blueseiro-jazzístico, começando por seu nome. Como tantos apaixonados (e fisgados) pela música de forma profunda, botou o pé na estrada em busca de seu sonho: viver dela. Recentemente deixou a capital do Maranhão e mudou-se para Curitiba, onde as possibilidades para seu trabalho são maiores, reflexo da ainda tímida difusão do estilo fora do eixo Rio-São Paulo: fazer blues no nordeste, apesar de prazeroso, também pode ser árduo, especialmente aos que o levam a sério de verdade. Mas o blues também sempre foi um gênero musical criado e mantido por espíritos fortes.
Aproveitando o momento de recomeço, a BLUEZinada! entrevistou a Lucille para uma devida apresentação aos que ainda não tiveram acesso ao seu talento (ainda não há material gravado) e, claro, para fazer o registro histórico deste ponto da trajetória. Se o Paraná acaba de ganhar uma rara, jovem e brilhante voz, o Maranhão pode se orgulhar por "exportá-la". O Brasil continua criando boa música e grandes artistas, ao contrário do que a mídia mainstream insiste em tentar nos convencer. Com um canto seguro e poderoso, temos aqui um ótimo exemplo do que o blues/jazz brasileiro tem mostrado nos últimos anos. Confira, nas linhas abaixo, uma pequena amostra do que pensa a artista:
BLUEZinada!
- Quem é Lucille Berce?
LB
- Sou
natural de Chapadinha, interior do Maranhão e sempre tive a música
presente em
meu cotidiano. Comecei a cantar na igreja, com 5 ou 6 anos,
acompanhada de meus pais. Logo aos 15 entrei numa banda de rock
Cristão e pouco tempo depois descobri o blues e jazz, estilos que
tenho trabalhado há dois anos. Minhas principais influências no
vocal jazz são Ella Fitzgerald, que foi uma das primeiras cantoras
de jazz que escutei, Billie Holiday, Carmen McRae, Sarah Vaughan e
Peggy Lee. No blues, Stevie Ray Vaughan, BB King, Muddy Waters
e Buddy Guy sempre escutei mais.
B!
- Quando começou sua relação com o blues e o jazz?
LB
- Aos
16 anos eu ainda estava no vocal da banda de rock cristão, e em uma
viagem de São Luis para Chapadinha, fui abordada no ônibus por um
senhor, no assento ao meu lado, que, cego, apenas sentiu o violão
que eu levava na frente e começou a fazer perguntas. Perguntou meu
nome e assim que eu falei, ele perguntou se eu sabia que era o nome
da guitarra do rei do blues, BB King. Eu já tinha ouvido falar, mas
não
sabia muito a
respeito. Então
ele pediu licença e começou a me contar histórias de blues e jazz.
Nunca mais o vi e não me recordo seu nome, mas ao chegar em casa,
estava em êxtase com tudo o que ouvi e comecei a pesquisar. Ao
escutar o solo de Texas
Flood
(SRV)
desabei em lágrimas e disse a mim mesma que era aquilo que queria
fazer. Então, uma pesquisa puxa a outra e em minutos eu estava
escutando tudo que eu podia de BB King, Albert King, Miles Davis,
John Coltrane, Fitzgerald, Buddy Guy entre tantos outros nomes,
encantada com a novidade e por ter sido tocada por aquele som. Eu
decidi naquele dia que faria
isso e faço
desde então.
B!
- Como você definiria a cena do blues e jazz em São Luís e no
Maranhão em geral?
LB
- A
cena de blues e jazz existe, mas não é tão forte quanto no sul e
sudeste do país. Nem vou tão longe: não é tão forte quanto em
Fortaleza, ali ao
lado. Temos músicos e grupos excelentes, que lutam e abraçam a
causa. Se mobilizam e juntos fazem eventos que chamam a atenção
para o estilo. Porém, ainda são poucos que trabalham no blues e
jazz, e mais, o público não está acostumado com sons do tipo. Por
isso, ainda é um público pequeno, porém fiel. Das experiências
que tive no MA, apenas em São Luís, Barreirinhas e São José de
Ribamar vi eventos, festivais de blues e jazz. O estado é enorme,
mas devido à cultura local, esse estilo não tem tanta força. Na
minha própria cidade natal nunca houve eventos ou festivais do tipo.
B!
- Por que decidiu deixar seu estado?
LB
- Justamente
pelos fatos citados acima.
O público lá é bem pequeno, e precisei sair em busca de
oportunidades. Por exemplo, não há nenhuma casa que se dedique
exclusivamente ao jazz e blues, como existe aqui em Curitiba. Também,
estando no MA, a distância era bem maior para os lugares onde
acontecem os maiores festivais e que são oportunidades para mostrar
o meu trabalho.
B!
- Por que a escolha por Curitiba? Teve dúvida entre outros lugares?
LB
- Vim
a Curitiba a
convite do guitarrista
de blues Décio Caetano. Desde a primeira vez em
que
vim à
cidade, me apaixonei por ela em si e pela cena jazz. Vagamente pensei
em São Paulo mas, por morar sozinha e saber dos custos de vida,
acabei descartando a possibilidade, pelo menos no momento.
B!
- Você encara a música como profissão ou se vê exercendo outras
atividades?
LB
- A
música hoje, pra mim, é profissão. Um ano atrás eu cursava
Arquitetura e apenas tocava nos finais de semana, mas movida pelo
desejo de trabalhar somente com o que eu amo fazer, acabei trancando
o curso e me dedicando ao estudo da música. Aqui em Curitiba
pretendo me especializar fazendo uma faculdade de música e agregando
excelência ao meu trabalho.
B! - Falando em estudo de música, você citou a conversa no ônibus com o
desconhecido que lhe despertou para o blues ao notar seu violão.
Você chegou a estudar este ou algum outro instrumento numa escola de
música ou com algum(a) professor(a)?
LB
- Comecei a tocar como terapia
aos 12 anos, quando meu pai faleceu. Inicialmente aprendi com uma
revistinha de cifras.
Depois frequentei algumas aulas gratuitas de uma instituição na
minha cidade. Mas essencialmente aprendi sozinha. Porém não me
considero violonista. Só o suficiente para me auxiliar nas
composições e na descontração com amigos.
B! - Você compõe? Caso sim, executa suas músicas nos shows? Pretende
gravá-las num futuro próximo? Caso não, fale um pouco sobre o
porquê e se pretende trabalhar mais para isso.
LB
- Sim, componho. Tenho canções em vários estilos, mas nunca
havia apresentado ao público. A primeira vez foi na comemoração do
Dia Internacional do Jazz, em São Luís, este ano, em que apresentei
minha música Decision, que será lançada como single em
breve. Porém ainda não as apresento em show. Quero incluí-las aos
poucos, depois que lançar.
B! - Você fez, em 29 de junho, seu primeiro show pós-mudança. (Veja o vídeo) Como vem
sendo a adaptação à nova cidade? Tem encontrado dificuldades em
voltar a se apresentar regularmente? Há uma quantidade satisfatória
de espaços para o blues/jazz ao vivo?
LB
- Tem sido muito boa. Tenho ido aos lugares apresentar minha
proposta de trabalho e tenho tido uma receptividade boa. A cena jazz
aqui tem crescido muito, há uma boa quantidade de opções de
lugares que estão adotando o estilo ao vivo.
B! - Em seu repertório há músicas de blueseiros/jazzistas brasileiros?
Em nosso nicho musical sempre há pessoas que mostram certa
resistência à língua portuguesa nas canções. Você percebe
alguma diferença de reação, tanto da plateia quanto dos próprios
músicos, quando canta (se canta, claro) em português em seus shows?
E qual sua opinião a respeito? É da ala mais liberal ou mais
ortodoxa?
LB
- Não há, em meu repertório, jazz e blues brasileiro (ainda),
mas faço a bossa, que é subgênero do jazz e tenho tido uma
aceitação incrível do público. Há alguns anos eu preferia não
incluir canções em português, mas hoje penso diferente. Nada
melhor que valorizar nossa língua através das tão belas canções
brasileiras.
B! - Você possui algum projeto que “não pode morrer sem ter feito”?
LB
- Tenho um sonho bem antigo que é criar uma Instituição de
Arte, em minha cidade-natal. Por dois fatores: primeiro, porque eu
gostaria de ter tido acesso a isso quando morei lá, e segundo,
porque também era o sonho do meu pai. Precisamos levar cultura e
arte de fácil acesso para os jovens, especialmente das cidades do
interior, que muitas vezes têm o dom, seja da música, seja das
artes plásticas, mas sem suporte para desenvolvê-los.
B! - Recentemente você publicou, em seu perfil no Facebook, um sincero
desabafo aos “espíritos de porco” de plantão. Há algo que
gostaria de acrescentar? Qual a mensagem da blueswoman Lucille
Berce ao mundo?
LB
- Tenho notado que os músicos, em vez de se ajudarem, se
sabotam. Não há uma ligação, um apoio forte no meio e isso me
deixa muito triste, pois poderíamos, juntos, fazer com que a nossa
arte fosse mais vista e valorizada. Minha mensagem, na verdade, é um
pedido: que os artistas tenham sempre confiança no seu trabalho e
sejam justos, consigo e com os colegas, para que o objetivo
principal, que é a difusão do jazz/blues para o público não seja
perdido em meio ao ego e individualidade. Juntos somos mais fortes!
🙂
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