Em conversas e/ou leituras sobre temas como “a importância da música em nossas vidas”, muitos músicos decretam que não foram eles que escolheram a música, mas, esta que os escolheu. Em meu caso, isso aconteceu através do Blues. Foi através dele que se deu esta escolha. Cresci em uma família muito musical. Através dela conheci estilos, instrumentos, artistas, conjuntos musicais, etc. No ambiente familiar, conheci artistas e/ou conjuntos musicais tais como: Beatles, Tom Jobim, Almir Guineto, Cartola, Led Zeppelin, além de compositores da música de concerto, como Beethoven, entre outros. Mesmo sem saber, meus ouvidos constantemente eram submetidos à audição de estilos musicais como o choro, rock, música erudita, samba, etc. Talvez, essa tradição realmente seja familiar.
Mesmo com pouca idade, me fascinava um quadro antigo com uma foto de meu avô paterno (na época falecido) com um violão sobre as pernas e fazendo um “si menor” (é claro que só fui descobrir o que era e que era um “si menor” anos mais tarde). Mas, mesmo com o ambiente musical que minha família me proporcionou, ainda não sentia o “chamado” da música. Convivia com ela, podia “vê-la”, senti-la, mas, não tinha, ainda, um interesse mais sério por ela. Na igreja, que foi outro importante ambiente musical para mim, não sentia este despertar para a música. Via os mais velhos tocando instrumentos musicais, ouvia os hinos e/ou canções, mas, nada que, ainda, chamasse a minha atenção de maneira mais profunda.
Meus pais, que possuem um casal de filhos, sendo eu o mais velho, faziam como a grande maioria dos pais, até hoje: proteção, cuidados e atenção voltados mais para as meninas. Isto, também, pode-se dizer que é uma tradição familiar. Sendo assim, minha irmã era mais protegida e, como consequência, demorou mais tempo para alcançar autonomia. Comigo aconteceu bem diferente. Meus pais também cuidavam, protegiam e me davam atenção, mas, talvez por ser menino, tive maior liberdade. E isto se dava em muitos casos, como, por exemplo, eu era o único que, lá pelos 11 anos de idade, ia e vinha sozinho da igreja, que distava uns três quilômetros de nossa casa.
Em uma noite de domingo, entre os anos de 1993 ou 1994, ao término do culto, voltei sozinho da igreja e cheguei em casa antes dos meus pais e irmã. Estando sozinho em casa, minha primeira atitude foi ligar a televisão e procurar algo interessante para assistir, ao que encontrei em um canal uma banda tocando em um local parecido com um bar ou um pequeno clube. Aquela música me chamou atenção. Não deixava de reparar no som que saia daquela guitarra, na performance. Acompanhei o programa inteiro, mesmo não sabendo o nome da banda ou os nomes dos músicos (se foi mencionado, eu não percebi), talvez pela dificuldade de compreender o idioma inglês, à época. Este programa foi ao ar por mais três domingos. E eu acompanhei todos. Sempre saindo rápido da igreja para não perder sequer um acorde – e eu nem sabia, até então, que existia esta palavra. Pronto! Ali se deu o “chamado”! A partir daquele momento, minha mente e coração foram inundados pelo som. Depois do primeiro domingo sem o tal programa, eu ficava procurando pelos demais canais de televisão, independente do dia ou horário, para ver se encontrava aquele cara branco com sua guitarra mágica de novo, para ver se conseguia contato com aquele som encantador novamente.
Anos mais tarde, já estudando música, que foi uma de minhas primeiras atitudes depois daquele encontro, meu professor de guitarra me disse que traria na aula seguinte algumas coisas para eu ver e ouvir em casa” e que muito contribuiria em minha formação. Dentre os vídeos que ele me presenteou em uma fita VHS, lá estava aquele som arrasador! Pronto! Reencontrei o que eu procurava mesmo sem saber onde. Muitas foram as perguntas feitas para o meu professor sobre aquela banda e seu guitarrista/cantor. Quem eram eles? Que música é essa? De onde isso vem? Uma sábia resposta bastou: este é Stevie Ray Vaughan, com sua banda Double Trouble. Eles tocam Blues! A partir daquele momento, pesquisando muito sobre Stevie Ray e Blues, descobri que o guitarrista/cantor tinha falecido em 1990 durante um acidente com um helicóptero e que, os programas que eu assisti, faziam parte de uma série de shows transmitidos pela TV em homenagem ao músico texano.
Desde então, sou um grande entusiasta deste estilo e vim a descobrir que quando os negros africanos chegaram à América do Norte, por volta do início do século 17, muitas coisas lhes foram tiradas. Os mais fortes ou saudáveis conseguiam aguentar as precárias condições em que eram transportados, sendo assim enviados, sobretudo, para as fazendas do Sul dos Estados Unidos para ali servirem de escravos, principalmente em plantações de algodão. Muitos desses negros nunca mais viram sua família, nunca mais voltaram ao seu país de origem. A falta da pátria e da família, aliada com a exploração que sofriam, fazia parte de sua rotina diária. Seus senhores tiraram seus familiares, mudaram seus nomes, mataram seus sonhos, mas, não conseguiram tirar algo muito importante para eles: sua música.
Durante o trabalho escravo, os negros usavam a música vocal para se comunicarem e para aliviarem as dores do trabalho pesado a que eram submetidos. Seus senhores permitiam esta manifestação, pois assim, o trabalho dos negros era amenizado, o que o tornava mais rentável, sobretudo porque desta maneira o feitor podia ter a certeza de que seus “trabalhadores” estavam no devido lugar. Eram as chamadas worksongs (canções de trabalho), que juntamente com os Negro Spirituals (música folclórica afro-americana com um solista e um coro) desempenharam importante papel no desenvolvimento do que viria a ser chamado de Blues.
Hoje, o Blues está enraizado na estrutura de muitos estilos musicais que surgiram a partir dele, tais como o Rock´n´roll e o Jazz. Desta maneira, o Blues se faz presente na música de muitos artistas que beberam desta fonte, como Beatles; Rolling Stones; Ray Charles; John Coltrane, etc. Sua influência se faz sentir até mesmo em alguns compositores eruditos, como George Gershwin em Rhapsody in Blue.
No documentário The Blues: Godfathers and sons, um filme de Martin Scorsese com direção de Marc Levin, há uma citação de Willie Dixon, importante artista do gênero, para quem “O Blues é a raiz. Todo o resto são os frutos” (apud LEVIN, 2006, 3´12´´). Esta raiz se encontra na região do Mississipi, no sul dos Estados Unidos, onde o Blues se originou como fruto do encontro do negro com o branco, da cultura africana com a americana (muito influenciada, na época, pela européia). Sendo assim, o Blues nos leva até a raiz de uma vasta produção musical com origem na cultura afro-americana.
Investigar esta raiz é o propósito deste trabalho, onde notaremos que o Blues é muito mais que um estilo musical. O primeiro capítulo, O Blues: sua história e histórias, apresenta a história do gênero musical e suas características, onde questões como escravidão, exploração, sofrimento e esperança serão abordados. No segundo capítulo, Características musicais do blues, serão enfatizados elementos estruturais do Blues, como forma, harmonia, escala e ritmo, além de seus sub-gêneros. Já no terceiro capítulo, o trabalho se volta para uma abordagem acerca dos processos envolvidos na aquisição da experiência musical, procurando responder a pergunta que dá título ao capítulo: Como se aprende Blues?. Ao final, as Considerações Finais buscam apresentar algumas razões para que o Blues esteja mais presente nas instituições acadêmicas brasileiras, tanto do ponto de vista da sua prática/escuta como da sua pesquisa. O trabalho ainda apresenta uma importante discografia onde, musicalmente, poderemos perceber a viagem musical realizada pelo Blues através de seus principais artistas e suas obras. A oportunidade que esta pesquisa proporcionou a mim e o privilégio de apresentá-la a outras pessoas vão certamente marcar minha vida musical.
Que através deste estilo, a música faça “mágica” com outras pessoas – assim como fez comigo – e os chamem para o mundo dos sons e ritmos.
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