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» » » » » Da África para os EUA e o mundo: blues, uma viagem musical #02


CAPÍTULO 1
O BLUES: SUA HISTÓRIA E HISTÓRIAS

1.1 Da “pré-história” aos dias de hoje

A viagem pela história do Blues começa muito antes deste gênero ser concebido. Devemos voltar até a gênese dos Estados Unidos da América, entender sua relação com a Inglaterra, e, por fim, já com o país independente, entender a questão racial, que tão forte marcou a história norte-americana. Flávio Campos e Renan Garcia Miranda mencionam no capítulo O nascimento dos Estados Unidos do livro A escrita da história: 

A trajetória da colonização dos Estados Unidos, dita de povoamento, liga-se à história política e religiosa da Inglaterra no século 17. Agitações civis e perseguições políticas nas revoluções Puritana (1640) e Gloriosa (1689) ajudaram a formar a corrente de emigração para a América do Norte. Perseguidos, puritanos, católicos, cavaleiros, aristocratas e realistas buscaram na América liberdade religiosa e/ou política (CAMPOS; MIRANDA, 2005, p. 289).

As principais colônias inglesas estavam na parte norte do território americano, em colônias como Nova York e Carolina do Norte. As colônias do Norte, com predominância dos puritanos ingleses, desenvolviam uma forma de economia diferente das do Sul. No Norte, predominava o comércio com outras regiões, e os produtos da terra eram utilizados em usinas e fábricas de papel ou serrarias. Já no Sul, região menos povoada, com poucas cidades, raros portos e com predominância dos fazendeiros ingleses, havia uma forte tradição do cultivo do próprio solo. Esta região dependia da exportação de seus produtos, sobretudo do algodão, do tabaco e do arroz. Daí vem a importância do trabalho escravo no sul dos Estados Unidos, tanto que os escravos eram numericamente superiores aos seus senhores.

Por influência dos ingleses que colonizaram os Estados Unidos da América, a música norte-americana terá uma forte tendência religiosa. Cabe aqui lembrar que, também por influência dos puritanos ingleses, os Estados Unidos tem uma forte tradição religiosa, sobretudo protestante. Sendo assim, com a chegada dos negros africanos, houve uma fusão cultural e religiosa entre a cultura norte-americana e africana. Isso explica o fato de as worksongs e os negro spirituals estarem enraizados na cultura norte-americana e não a música erudita.

Leandro Karnal, em seu livro História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI, diz:

O primeiro navio trazendo escravos chegou à Virgínia no ano de 1619. Aliás, estima-se que, até 1860, aproximadamente 400 mil africanos (vindos principalmente da parte ocidental do continente) chegaram ao país a fim de trabalhar nas fazendas sulistas de tabaco e algodão (KARNAL, 2007, p. 65).

O quadro que encontramos até aqui é o de um país dividido em duas grandes regiões, opostas econômica, militar e culturalmente. Essa oposição vai levar a uma sangrenta Guerra civil, com vitória para as colônias do Norte. É a partir deste período que a música afro-americana vai começar a se desenvolver. Os negros africanos que trabalhavam como escravos no Sul do país serão de suma importância neste processo, bem como a região do Delta do rio Yazoo, região onde se deu a gênese do Blues. Roberto Muggiati diz em seu livro Blues: da lama à fama:

Se o Blues teve um berço, é o Delta. Ao ouvir falar do Delta, a maioria pensa no Delta do Mississipi, nas vizinhanças de Nova Orleans. Errado: este foi o berço do jazz. O Delta a que os bluesmen se referem, como uma espécie de país mítico, é o delta lamacento do rio Yazoo, que junta suas águas às do Mississipi nas proximidades de Vicksburg, região de inundações bíblicas onde camadas de lama vão se depositando a cada primavera. (MUGGIATI, 1995, p.19).

Os escravos utilizavam as chamadas worksongs durante o trabalho com o fim de amenizar o sofrimento causado pela longa e dolorosa jornada de trabalho e como forma de comunicação entre eles- em um idioma que os seus senhores não entendiam. Vale salientar que, por dois motivos, as worksongs eram vocais. Primeiro porque eram canções entoadas durante o trabalho, segundo, mesmo não estando no momento do trabalho, os senhores não permitiam que os negros utilizassem seus instrumentos mais tradicionais – os de percussão e os de sopro. Era comum as worksongs tratarem de temas como a liberdade, a esperança, o céu, a vida eterna, etc. Como na música “Hoe Emma Hoe”:

Hoe Emma Hoe, you turn around dig a hole in the ground, Hoe Emma Hoe.
Emma, you from the country.
Emma help me to pull these weeds.
Emma work harder than two grown men. [1]

Ou, ainda, em “Trouble so hard”:

O Lord, trouble so hard. Yes, indeed, my trouble is hard.
O Lord, trouble so hard.Don’t nobody know my troubles but God.
Yes, indeed, my trouble’s so hard. O Lord, trouble so hard.
Wait and let me tell you what the sister will do:‘Fo’ your face, she have a love for you,
'Hind your back, scandalize your name,Jest the same you have to bear the blame. [2]

Também nas worksongs, os negros enganavam seus senhores quando entoavam letras com um sentido diferente do que se ouvia. Sendo assim, em uma worksong que dizia “minha mulher não cuida de mim”, essa “mulher”, na verdade, era o patrão e, desta forma, cada grupo de negros podia passar para outro, através da música, a maneira como eles estavam sendo tratados. As worksongs também têm sua importância porque foi através delas que se desenvolveu o canto de pergunta e resposta, forma em que um solista “pergunta” e o coro “responde”. Esta forma será tradicional na música norte-americana, sobretudo nos negro spirituals (música vocal afroamericana para coro e solista).

Até este momento, o Blues, propriamente dito, ainda não havia nascido. Havia, sim, a manifestação musical dos escravos negros durante sua jornada de trabalho, que a usavam, também, para descrever a vida dolorosa que levavam. Segundo Gilbert Chase, em seu livro Do Salmo ao Jazz: a música dos Estados Unidos, “A origem dos blues é obscura. Pode-se conjeturar que eles se tenham desenvolvido concomitantemente com o resto da canção folclórica afroamericana, no Sul dos Estados Unidos” (CHASE,1957, p. 413). Muggiati (1995) também destaca que: “há quem argumente que o blues veio da música religiosa e dos spirituals, canções que os negros criaram a partir das histórias da Bíblia” (MUGGIATI, 1995, p. 9).

O que se tem em consenso é que o Blues começou a se desenvolver com o término da Guerra Civil americana, e, que, em sua essência, serviam para descrever o estado de espírito da população afro-americana, geralmente um estado de sofrimento, melancolia e tristeza. Daí surgiu a expressão feeling blue (sentir-se triste, abatido). Já em 1550 a expressão to look blue, no sentido de estar sofrendo de medo, ansiedade, tristeza, já era corrente. Os escravos encontravam no Blues um alívio para suas tormentas e sofrimentos. Com instrumentos improvisados- como, por exemplo, um arame preso na porta que era tocado com uma garrafa de vidro para imitar a voz humana, ou uma espécie de guitarra acústica, feita com uma abóbora seca presa em um pedaço de madeira- já que não tinham acesso e nem dinheiro para comprar instrumentos tradicionais- os negros tinham na música um momento de alívio e de consolo. 

A voz era o principal instrumento dos negros. Seus senhores não autorizavam o uso dos instrumentos tradicionais porque temiam que eles pudessem ser usados para uma rebelião. Com a fé e a música, eles encontraram uma maneira de amenizar suas dores. Não obstante, muitas canções negras falavam na esperança de dias melhores, na liberdade. Neste sentido, aparece a figura do “trem” e do “rio”, onde os negros acreditavam que “pegar um trem” ou “atravessar o rio” os levaria de volta ao seu país, às suas famílias. De acordo com Muggiati (1995), “Trens e trilhos correm no sangue pelas veias do blues. A ferrovia não é um mero meio de transporte- é quase um veículo mágico que leva o negro a transcender a sua condição (MUGGIATI, 1995, p. 29).


[1] Hoe Emma Hoe,volte a cavar um buraco no chão, Hoe Emma Hoe, Emma, você é daqui, Emma me ajude a puxar estas ervas daninhas; Emma trabalhe mais que dois homens adultos. (Tradução do autor)

[2] Senhor, os problemas são tão difíceis. Sim, de fato, meu problema é muito difícil.
Senhor, meus problemas são tão difíceis e ninguém sabe deles só Deus.
Sim, de fato, são tão difíceis meus problemas. Oh senhor, são tão difíceis.
Deixe-me dizer o que a irmã fará. (Tradução do autor)








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Publicado por I. Malförea

BLUEZinada! é uma zine produzida pela Distintivo Blue e distribuída gratuitamente, desde 2011. Saiba mais sobre a banda:

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